04 fevereiro, 2016

Amigos - versão II - Rosinha

O nome era Rosa, ou Rosinha, como todas a chamavam. Tinha sido escolhido pelos pais, ambos professores na única escola da pequena cidade, antes mesmo do nascimento.
Menina franzina de pele muito clara, crescera entre livros e cadernos e, contavam os pais, aprendera a ler e escrever sozinha, sentada em um banquinho no canto da sala de aula da mãe.
Enquanto crescia, observou que nem todos os amigos se interessavam pelas histórias fantásticas que ela aprendia com o pai, ou pelos contos de fadas que ouvia da mãe antes de dormir. Se acostumou a brincar sozinha, recitando falas de personagens dos livros que lia em casa, ou se sentando no balanço à beira do rio, cantando canções que ela própria criava.
Na escola fez amizade com Zé Pedro e Bento, os únicos que não a mandavam “brincar com as outras meninas”, e ouviam com atenção as incríveis aventuras de Dom Quixote que ela contava. A caminho de casa, se divertiam com adivinhações e imitações que faziam das pessoas que conheciam.
Quando Bento contou que um dia seria um grande fazendeiro, ela o incentivou, descrevendo tudo que ele seria capaz de possuir: muitas terras, rebanhos e plantações. Mostrando maturidade, o aconselhou a economizar e trabalhar muito, para um dia ter tudo aquilo que queria. Da mesma forma, ouviu com atenção os planos de Zé Pedro, que pretendia ser médico, e teria que estudar bastante e viajar para cidade grande. De seus próprios sonhos, falava pouco.
No último ano da escola, uma tristeza a invadiu. Para continuar os seus estudos, teria que se mudar para a cidade grande, o que naquela época era inviável para sua família, e inaceitável para a maioria dos pais das moças de sua idade. Como não podia ir, teria que renunciar a tudo que queria conhecer e aprender. Então, e para fugir dessa realidade, passou a criar fantasias românticas, em que sua espera seria recompensada por um personagem salvador, com quem ela iria para bem longe.
Nessa mesma época os pais de Zé Pedro morreram, deixando a grande fazenda como herança. Logo após o velório, o amigo lhe confessara que chegara o momento de partir e a convidara a acompanha-lo. Surpresa e insegura, levara pouco tempo para consultar os pais e pedir a benção, prometendo que se casariam na primeira cidade, e, quem sabe, voltariam depois de algum tempo.
A partir de então, a vida de Rosinha se transformou. A cidade grande a envolveu, com suas ruas cheias de gente, lojas e carros. Sem preocupação, deixou que Zé Pedro conduzisse todas as ações:  permitiu que ele adiasse a procura de uma casa, e se hospedarem um bom hotel. Ele deixara os estudos para o ano seguinte. Tinham se divertido e comprado roupas, sapatos e muitos artigos com que sempre sonhara.
Também o casamento ficara adiado, ao contrário do que tinha prometido aos pais. Tudo que se referia à antiga vida, aos poucos fora ficando no passado. As ligações telefônicas aos amigos e mesmo aos pais foram se tornando raras até que, dois anos depois, soubera por acaso da morte de ambos.
Levaram uma vida de diversões por quase três anos, e então o dinheiro acabou. Zé Pedro mudava frequentemente de emprego, procurando assegurar a condição de vida de ambos.
Ela, que nunca trabalhara, e estava despreparada, passava os dias no pequeno apartamento que tinham alugado depois de abandonarem o hotel, relendo antigos livros e assistindo filmes na televisão. Em meio à crise, percebeu que estava grávida.
Depois de uma gravidez com problemas, o filho nasceu em uma noite quente, de um parto difícil e  doloroso. Rosinha o chamou de “Antonio”, mesmo nome de seu pai.
Nos anos seguintes, ela se dedicou integralmente ao filho. E quando ele já tinha idade para entender, ela lhe falava da própria infância no campo, das brincadeiras, no rio e dos amigos. Algumas vezes, Zé Pedro a escutava calado, sentado no canto da sala, com o olhar perdido em suas próprias lembranças.
Nas poucas horas que tinha para si mesma, visitava um pequeno parque próximo, onde se sentava à sombra das árvores, com um dos antigos livros do pai. Refletia sobre o rumo que tinha dado à sua própria vida, e o fim dos seus sonhos juvenis. Ela e Zé Pedro pouco falavam sobre Bento, mas ela sabia que ambos sentiam saudades.
Quando Antonio completou 5 anos, Zé Pedro propôs que voltassem à cidade natal. Naquele dia ela concordou com um aceno da cabeça, olhos fixos no companheiro e o coração angustiado. Sabiam que seria mais do que um regresso. Podiam ver nos olhos um do outro os arrependimentos, e que agora enterravam sonhos.
Um mês depois, juntaram o pouco que tinham e partiram. Ao avistarem as primeiras casas da cidade, deram-se as mãos comovidos. Rosinha já se sentia madura e consciente que naquele lugar iria criar seu filho, onde continuava sendo a sua terra. José Pedro, por sua vez, aprendera muito com os erros, e dentro de si sentia enorme vontade de recomeçar.
Ao chegar, não procuraram Bento. Sabiam onde encontra-lo, mas preferiam se acomodar primeiro, antes de visita-lo e apresentar o filho. Rosinha lamentava agora não ter se despedido do amigo de infância, e tinha receio que a antiga amizade já não existisse.
Ela sabia que Zé Pedro costumava andar pela antiga fazenda, e pelos lugares que conhecia tão bem, mas quando, certa tarde, lhe avisaram que algo tinha acontecido a Bento, ela teve certeza de que os dois estavam juntos. Sabia que o marido se preocuparia com o amigo, e faria qualquer coisa para ajudá-lo.
Nos dias seguintes, assim que acordava e vestia Antonio, caminhavam até a casa da fazenda de Bento onde Zé Pedro tinha passado  a dormir, esperando que o amigo se restabelecesse. Durante todo o dia se empenhava nos afazeres da casa, no preparo das refeições e nos cuidados das roupas do enfermo. O marido cuidava dos trabalhos na fazenda, e todos os dias parecia mais animado com os resultados.
Quando Bento passou a caminhar, e se sentar com Zé Pedro na varanda, nos finais de tarde, ela chegava e se juntava a eles. Não falavam muito do período em que tinham estado distantes, mas  das lembranças da infância, e de aventuras compartilhadas. Aos poucos estabeleceu-se uma rotina na vida dos três, e quando Bento ofereceu um emprego a Zé Pedro este aceitou de imediato.
Foi Bento também que a apresentou aos donos da quitanda na cidade, recomendando que comprassem os doces bolos feitos por ela. Com o emprego e novas amizades, Rosinha voltou  a sorrir e a tecer planos, sentia-se querida e importante. Sempre que conseguia juntar umas economias, encomendava alguns livros ao comerciante que sempre ia à cidade. Ler continuava sendo seu maior prazer, e agora também fonte de muitas informações na sua nova vida.

No último domingo, preparou uma grande cesta com guloseimas para o piquenique à sombra da mangueira, e quando Bento se sentou ao seu lado, com Antonio no colo, fez o convite para que o amigo batizasse o filho. Percebeu que ele segurava lágrimas, embora abrisse um largo sorriso, mas não perguntou a razão... o importante era o valor daquela amizade, que tinha resistido ao tempo e desventuras da vida.

(versão visão de um dos personagens do conto Amigos)

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