25 outubro, 2015

Neste Natal


Naquele dia, nem mesmo a decoração festiva, ou todos os preparativos para ceia de Natal com a família, conseguiram tirar a incômoda melancolia que ela sentia.
Tinha sido um ano difícil, com as perdas do pai e o marido, os problemas de saúde de um irmão, e as dificuldades financeiras pelas quais passavam. Mesmo assim, insistira na presença da família, convidando pessoalmente cada um, e recomendando que não se atrasassem.
Durante a tarde conferiu mais uma vez a grande árvore de Natal montada na sala. Era a mesma, desde que os filhos tinham nascido, e restavam poucos enfeites, depois de tantos anos.
Quando eram crianças, sentiam enorme prazer em colocar cada ornamento, e tentavam adivinhar o conteúdo dos presentes que dia a dia eram colocados sob a árvore. Agora já eram adultos, chegavam e, enquanto esperavam o jantar, se distraíam com a televisão ou se sentavam por perto dela durante alguns minutos, mas logo se afastavam desinteressados. No Natal anterior, os netos adolescentes, tão envolvidos com seus aparelhos eletrônicos, passaram boa parte da noite silenciosos e entediados.
"Espero que estejam animados hoje", pensou.
Depois de tudo preparado e arrumado, avaliou a pequena sala, conferindo o resultado.
Foi quando seus olhos pousaram na antiga caixa de madeira, na última prateleira da estante de livros. Não se lembrava de quando a tinha colocado naquele lugar, mas sabia que alguns anos tinham se passado, desde que olhara o conteúdo pela última vez.
Com cuidado, pegou o objeto e se sentou na sua poltrona predileta. Antes de abrir, passou os dedos pela pintura desbotada da tampa e a fechadura enferrujada.
Enquanto revia suas relíquias pessoais ali guardadas, deixou-se invadir pela emoção e saudade.
Em meio a antigas fotografias, pequenos brinquedos, lembranças de escola, desenhos dos filhos e cartões, encontrou o maço de cartas infantis endereçadas a Papai Noel, escritas em diferentes anos, e guardadas secretamente por ela. Foi relendo uma a uma, buscando na memória os momentos em que os filhos acordavam falantes, ansiosos para ver se os pedidos tinham sido atendidos, soltando gritinhos de alegria diante dos pacotes.
Mas foi um cartão, feito em conjunto pelos filhos, que provocou lágrimas e uma reflexão sobre o encontro daquela noite. Depois de algum tempo, consultou o relógio, deixou a caixa no sofá, e se preparou para a chegada da família.

Chegaram trazendo alguns presentes e, antes que ela fizesse qualquer comentário, perceberam seus pequenos arranjos.
Na antiga árvore, encontraram alguns dos brinquedos de criança, usados como novos enfeites. Sobre a mesinha de centro, as delicadas cartinhas, de forma que pudessem reconhece-las e manuseá-las. Os lindos desenhos, com figuras de Papai Noel e bolas coloridas, enfeitavam a parede.
Bastou um olhar, trocado entre mãe e filhos, para que a mensagem de carinho familiar e todo o amor que sentiam fosse, de repente, latente entre eles. Juntos releram tudo, contando aos filhos os sonhos de criança, cheios da magia do Natal em velhos tempos. 
Ela percebeu, feliz, a diversão dos netos ao escutarem os pais descrevendo as primeiras tentativas de pedalar na bicicleta tão sonhada, ou a grande emoção ao ganhar uma boneca que dizia "mamá", algo que superava qualquer fantasia infantil, naquela época. Comentaram as artimanhas do avô, naquele Natal em que se vestira de Noel, e entrara pela janela carregando um saco de presentes para surpreender os filhos. Com ingenuidade infantil, falaram daquela visita por meses, acreditando que o velhinho visitava todas as crianças do mundo.

Ao se sentarem todos à mesa, ela pediu ao neto mais velho para ler aquele cartão que separara. Embora tímido, o jovem não resistiu ao pedido, e de boa vontade leu as palavras que revelavam uma oração, escrita pelo pai e a tia, quando eram pequenos:

Querido Menino Jesus,
Proteja a nossa família,
para que todos os anos possamos estar juntos,
unidos pelo Amor e Paz.
E que sempre nos lembremos
desta linda noite de Natal!

Depois de um breve silêncio, sorrisos foram se abrindo e um sentimento de grande afeição contagiou  a todos.
"O Espírito do Natal" voltou, pensou ela.
Todos sabiam que aquele seria um Natal inesquecível...




18 julho, 2015

O Dono do Bosque

Bem ao norte, longe da cidade, existia um bosque. Com árvores frondosas e relva verde, sua beleza exuberante se destacava naquela paisagem, já marcada pelo homem e seus danos à natureza.
Em seu interior havia uma única casa, habitada por aquele a quem chamavam "Dono do Bosque".
Pouco se sabia sobre aquele solitário morador. Contavam que nascera ali mesmo, na casa de madeira construída pelos pais. Meses antes do nascimento, seu pai escolhera uma das árvores, a derrubara, e fizera, com as próprias mãos, um pequeno berço. Depois de pronto, o trouxera para dentro de casa para que a esposa o preparasse para o filho que esperavam. "O berço é o primeiro acolhimento após o ventre da mãe", dissera ele, orgulhoso pelo trabalho.
O menino cresceu sem outros amigos, e sem sair dos limites das grandes árvores.
Na adolescência perdeu a única família que tinha conhecido: primeiro o pai, atingido pela queda de uma das árvores durante uma ventania, e, poucos meses depois, a mãe adoeceu gravemente e também veio a falecer.
Ambos foram enterrados por ele, no pequeno jardim que a mãe havia amorosamente plantado e cuidado a vida inteira.
Desde então, vivia com recursos do próprio bosque e, mesmo sozinho, desenvolveu habilidades e conhecimentos. Acompanhava a troca das estações pelas mudanças das folhas ou pelo vento que soprava, e percebia o ciclo da vida pelos próprios animais que observava: filhotes que cresciam, fêmeas que reproduziam, magníficos pássaros que fugiam sem que ele pudesse evitar.
Nunca buscou outras companhias, e na segurança do seu lugar conversava com os pássaros e outros animais. Diziam que costumava abraçar as árvores, ficando unido ao troco por longos minutos, em conversas e preces que só ele compreendia.
Conhecia cada trilha, cada clareira, e percorrera toda a extensão do riacho, com os pés descalços na água fria e límpida.
Guardava na memória todas as tempestades e ameaças que o bosque sofrera, como aquele grande incêndio alguns anos antes, apagado com a chegada milagrosa de uma chuva que durou três dias.
No entanto, diferente das belas árvores, que renovavam as folhas a cada estação, a natureza não poupou o dono do bosque das agruras de envelhecer.
A cada inverno ele foi se sentindo mais fraco e doente, e já não percorria as trilhas entre as árvores. Também não conseguia se deitar, como antes, sobre as folhas no chão, nos dias de Outono. E quando chegava a primavera, já não tinha forças para chegar ao outro lado do bosque, para ver os ninhos dos pássaros ou as flores daquele ano.
Acostumou-se então a ficar à sombra de um grande carvalho, bem próximo ao riacho, de onde podia observar a entrada do bosque. Não que esperasse alguma visita, mas por sentir necessidade de estar entre todas aquelas árvores.
Tinha arrastado uma velha cadeira de braços largos, e nela se sentava por horas, com os pés tocando a terra fria. Ao seu lado, sobre uma pedra, deixava sempre o livro predileto, já gasto de tantas releituras.
Foi então, muito tempo depois, que em um dos mais quentes verões de que se teve notícia, que algumas pessoas resolveram se aventurar pelo bosque, à procura de um lugar mais agradável que as ruas quentes da cidade.
Se espalharam pelas trilhas, falando alto e espantando pássaros e pequenos animais. 
Atravessaram o riacho e viram uma pequena casa, já gasta pelo tempo, e com aparência de abandono.
Curiosos, caminharam até um par de árvores que se destacavam das outras. Um grande e velho carvalho, que sombreava a maior parte do terreno, e ao seu lado, uma outra um pouco menor, de madeira clara e galhos curtos, cobertos de folhas e pequenas flores.
A composição, do tronco e galhos, provocava uma estranha imagem, que surpreendeu a todos. Observando melhor, compararam o que viam a figura de um homem sentado, que aproveitava a sombra do carvalho para uma leitura ao fim da tarde.

O que eles nunca souberam, foi que o dono do bosque se tornara definitivamente parte dele. Os pés tinham criado raízes profundas e fortalecido o corpo, que se tornou cerne, e aqueles braços que antes abraçavam árvores agora eram galhos com folhas e flores, que abrigavam os novos ninhos de outros pequenos passarinhos que em breve povoariam o bosque.


23 junho, 2015

Colorindo o Mundo

Um dia, o mundo amanheceu todo cinza e triste. As árvores, as casas, as ruas e os  carros, todos ficaram da cor cinza. Parecia que o sr. Vento tinha soprado pó de cimento sobre todas as coisas.
Quando a menina acordou, olhou pela janela e ficou assustada por ver o mundo tão feio.
Então perguntou para o sol o que devia fazer, mas o sol era apenas uma luzinha amarela, muito fraquinha no céu cinzento, e respondeu­lhe com uma voz baixinha, vinda lá de cima dizendo:" Ah, menina, você tem pintar o mundo de novo!".
Ela apressou­se para lavar os dentinhos, o rosto e, ainda antes de comer e ir para a escola, quis deixar o mundo bonito outra vez.
Buscou dentro da gaveta da sua mesa do quarto a caixa de lápis de cor, foi à janela para ver bem como era o mundo, voltou para a mesa e desenhou tudo numa folha de papel. Depois começou a colorir o mundo.
Fez a casa da frente azul outra vez, e a sua boneca voltou a ter cabelos vermelhos como tinha antes do mundo mudar de cor. Também pintou bem branquinho, como um floco de neve, um cachorrinho vira­lata que sempre passava muito sujo, para parecer que tinha tomado banho. Assim, talvez mamãe a deixasse trazê­lo para o quintal e brincar com ele.
Depois foi pintando as árvores, os carros de todas as cores, as flores dos jardins, uma de cada cor, o céu de azul muito bonito, e o sol de amarelo muito forte e brilhante, como era antes.
E tudo o que a menina desenhava no papel, ia mudando lá fora na rua, deixando de ser cinza e ficando colorido como no desenho. Mas logo a menina ficou muito cansada, porque o mundo era muito grande e tinha muitas coisas para pintar. Ela tinha de ir para a escola, já estava atrasada e não podia pintar mais.
E ela chorou, chorou, até aparecer uma borboleta mágica, que voava para cá e para lá, e que tinha todas as cores do mundo reunidas nas suas asas.
"Voa comigo, que eu te ajudo a pintar!", disse a borboletinha.
"Mas eu não posso voar", lamentou­se a menina.
Foi então que a borboleta teve uma idéia: bateu as asas rapidinho, para chamar todos os animais do jardim. Logo chegaram o esquilo serelepe, a abelha zum­zum, os passarinhos piu­piu e as lagartixas corre­corre. O último a chegar foi o cágado molenga, muito dorminhoco, que de vez em quando parava, encolhia as patinhas para dentro da carapaça, escondia a cabeça e tirava um cochilo.
Foi uma confusão na janela, porque todos queriam entrar no quarto, e falavam todos ao mesmo tempo. A menina, coitadinha, não sabia o que fazer.
Como ninguém escutava, ela subiu em cima do banco de pedra e começou a gritar: "atenção, atenção", e quando todos fizeram silêncio, a dona Coruja sabe­tudo, que era a mais sábia, lá do alto da árvore, explicou como fariam para ajudar a menina a pintar o mundo. Distribuiu tarefas a todos e explicou que, se todos fizessem a sua parte, o mundo ficaria bonito outra vez.
"Você, abelha, chama todas as suas irmãs para irem pintar todas as flores, porque vocês já voam sempre, de flor em flor, vai ser muito fácil, não é ? E vocês conhecem todas as cidades e são muito rápidas. Para você lagartixa, vou pedir que pinte os muros, as paredes das casas e as ruas."
O esquilo logo se adiantou: " e eu? e eu?" . "Você, meu amiguinho, vai pintar os troncos das árvores e todos os lugares onde conseguir entrar, porque você é muito esperto!".
Sem nem precisar mandar, os passarinhos já foram pegando os lápis com os biquinhos e bateram as asinhas voando para colorir as folhas das árvores e as nuvens, lá no alto, onde só mesmo os passarinhos chegam.
A menina correu para a escola, aflita porque já estava atrasada e nesse dia havia coisas muito bonitas para aprender.
Mas os animaizinhos continuaram a colorir o mundo.
E assim foi o dia inteiro. Pintaram, pintaram, até tudo ficar colorido de novo.
E quando o sol já estava se recolhendo, amarelinho que era uma beleza de ver, a menina chegou da escola e deitou­se no gramado verdinho, feliz por tudo estar tão bonito. Olhava o céu, as nuvens branquinhas, as flores em redor, quando uma vozinha baixinha e arrastada a chamou:
“Ei cuidado comigo!”
A menina levou um susto e procurou no meio da grama quem estava gritando. Era a joaninha pequenina, tão vermelhinha de bolinhas pretinhas, debaixo da folhinha de grama.
“Você? Desculpa, não estava te vendo, amiguinha. Suba aqui no meu braço para eu ver como são lindas as suas cores.”
A joaninha veio depressa e subiu, e fez questão de contar: “quem me pintou foi cágado molenga, com um pincel bem pequeninho”
“você ficou bonita!”
Aos poucos os animais foram chegando e sentando perto da menina e da joaninha, para descansar.
O mundo já estava todo colorido de novo.
O jardim ficou cheio de flores, com som de abelhas e passarinhos, e os esquilos pulando por todo lado.

Só quem ainda trabalhava era a borboletinha. Pousada numa caixa de lápis, ela sacudia as asinhas e coloria cada um deles, para que depois pudessem pintar todos os desenhos que as crianças fazem.

(conto infantil que inicia uma série de histórias para crianças)
(foto Poetas Trabajando)


18 abril, 2015

A Senhorinha e as Colchas de Retalhos

Todos na cidade conheceram a história daquela senhorinha.
Contava-se que nascera em família abastada mas depois de recusar um casamento arranjado entre famílias, tinha preferido viver de forma mais simples, na pequena casa próxima ao rio.

Depois disso, fora professora por muitos anos, e pelas suas mãos de mestra tinha passado a da maioria das crianças da pequena cidade, e com isso acabara se tornando uma espécie de "conselheira", que recebia a todos sempre com um sorriso amável e acolhedor.

Quem passava pela estreita rua de pedras, fosse em dias de chuva ou de sol, podia vê-la sentada na velha cadeira de balanço da varanda, costurando colchas de retalhos com grande habilidade.

Algumas vezes um antigo aluno, já um adulto, vinha cumprimenta-la. Chegava e sentava-se perto dela, no degrau de entrada, e começava a falar da própria vida. Ela ia assentindo com a cabeça, murmurando para que ele "seguisse o coração" ou, dependendo do assunto, que "deixasse nas mãos de Deus".

Muitas moças vinham pedir conselhos para corações partidos e desilusões de amor. Ela ouvia quieta, olhos baixos na costura no colo, até que tudo fosse revelado e as lágrimas esgotadas. Então se levantava, buscava xícaras de chá bem doce, e iniciava uma conversa sobre o poder de cuidarmos de nossas próprias feridas, até se tornarem pequenas cicatrizes e serem esquecidas.

Outras vezes, mães traziam seus filhos pequenos e os colocavam em seu colo. Pediam uma "benção" de saúde, ou contavam proezas que a faziam rir espantada, e os abraçar como se fossem netos queridos, ou filhos que nunca tivera.

Embora muito querida, poucos visitantes chegaram a observar melhor os delicados trabalhos de costura feitos por ela. Por isso não viam a exatidão com que ela cortava cada retalho, depois de uma escolha entre os tecidos separados e guardados segundo uma lógica só dela, e que ia muito além da mera seleção de cores e padrões.

Assim, nunca souberam que cada colcha de retalhos contava uma parte de sua história, e que aquela tinha sido a forma que escolhera para retratar seu passado, e as emoções vividas ao longo dos anos. Ela guardava suas memórias costuradas e bem dobradas, transformadas em uma forma especial de livros, que só ela interpretava.

Em uma das primeiras, feita quando ainda era menina, via-se uma mistura de tecidos alegres: pequenos animaizinhos, flores e frutas nas estampas que escolhera junto com mãe, enquanto aprendia a costurar. Dessa época tinha outras em diferentes tamanhos, todas retratando algo de particular através dos desenhos e cores.

Em uma outra, tons cinzas e desenhos apagados registraram o ano em que perdeu os pais, e a lembravam dos longos meses em vigília ao lado de camas de hospital, em que só a costura lhe deu esperanças.

Uma das prediletas, guardada com carinho em um armário, fora feita com retalhos de tecidos presenteados pelas crianças da escola, e que era uma mistura de desenhos de flores, de todas as cores e formatos.

Junto dela, uma outra inacabada, pois a alegria com que começara, vista na escolha por estampas com corações e rosas, se desfizera com a partida de grande amor.

Ela nunca tinha pensado em se desfazer das colchas, e sempre que terminava uma, a dobrava e guardava com carinho, como a um livro escrito com muito esforço e sentimento, e que ninguém chegaria a ler.

Essa doce senhora ainda vive, e embora mais lentamente, continua a costurar seus retalhos e dar os seus conselhos.
Velha aluna, ainda ontem a visitei e pedi que me abençoasse. Senti nas suas mãos trêmulas uma fé inabalável, e as beijei em sincero agradecimento ao me despedir.

Quando saía, toquei a colcha quase terminada em seu colo, e observei que era de retalhos com desenhos de nuvens brancas, em um céu azul límpido e claro.


(foto Poetas Trabajando)


10 março, 2015

Infância

Ela era ainda muito nova, quando seus pais perceberam seu temperamento audacioso e a mente inquieta.
Única menina entre quatro irmãos, surpreendia a todos quando abandonava as delicadas bonecas, presentes caros que recebera, e corria pelo quintal em barulhentas brincadeiras com os irmãos. Sem sentir medo, subia até os últimos galhos das mangueiras, e trazia consigo doces frutos para ofertar à mãe.
Outras vezes saía a perseguir calangos, para transformá­los em seres mágicos, com quem conversava por horas, antes de soltá­los no jardim.
Algumas vezes voltava para casa com cicatrizes dolorosas: sinais de quedas ou aventuras pela vizinhança. Nessas ocasiões, ouvia de cabeça baixa as infindáveis recriminações dos pais, e aceitava sem rancor o castigo imposto: dias sem sair de casa, em que ficava à janela olhando o jardim.
Mas depois de algum tempo, durante uma tarde com o pai, bastava que o envolvesse pelo pescoço e prometesse se comportar, para que ele cedesse às suas vontades, e de novo a libertasse para o sol do quintal, e inúmeras brincadeiras que aquele ambiente proporcionava.
Até que um dia, a idade de estudar chegou, e os pais decidiram que a menina de cabelos desalinhados, joelhos marcados e sujos, iria, como todas as meninas na época, para o colégio interno. Nem mesmos as lágrimas derramadas, e o pavor estampado nos doces olhos da criança, foram capazes de comover a família.
Quando partiu, deixou para trás todos os sonhos e fantasias infantis, e enfrentou com um mínimo de coragem a nova vida que lhe foi apresentada.
Trocou o quintal pelas salas de estudo, e as brincadeiras pelas orações e tarefas da escola. Aos poucos deixou de lembrar do pomar, dos pequenos animais e as corridas com os amigos. Se esqueceu das flores que colhia e prendia nos cabelos, e da fonte do jardim, onde se sentava e mergulhava os pés na água fria.
E quando, por fim, voltou, já mulher feita, andou pela casa à procura de lembranças. Visitou os quartos, abriu janelas e gavetas à procura de antigos objetos.

Ao fim do dia se sentou perto da janela, e abrindo um pequeno caderno que trouxera consigo, começou a escrever. 

Contou a história da menina que amava a liberdade e o sol no rosto, e vivia em um quintal encantado, de onde não precisava sair nunca, e onde estavam todas as alegrias que uma criança devia viver.


14 fevereiro, 2015

O Presente


Depois dos filhos criados e casados, e vendo a velhice chegar, Tio Zé e Tia Fia passavam os dias entre os trabalhos na pequena fazenda, e as poucas visitas aos vizinhos.
Há tempos a filha mais velha tinha se mudado com o marido para o nordeste, e  o  filho caçula, temporão que Deus mandou, trabalhava na cidade grande, e vinha uma vez por mês. Nesses dias, trazia sempre um agrado, alguma novidade da cidade para facilitar a vida da mãe, ou algo que alegrasse a solitária vida dos pais.
Quando soube que a energia elétrica rural enfim tinha chegado por lá, gastou todo o seu salário no melhor de todos os presentes: uma televisão novinha, que depositou orgulhosamente na mesa da pequena sala da casa. O mais difícil foi instalar a antena no telhado, com subidas e descidas sem fim, até acertar a imagem. Quando terminou, abraçou os pais e partiu apressado, a tempo de pegar a condução de volta para a cidade.
Nos dias que se seguiram, os vizinhos pouco viram o velho casal. As visitas noturnas já não aconteciam, e na quermesse da igreja daquele mês ninguém provou os deliciosos biscoitos da Tia Fia, na barraca das quitandas.
 Essas mudanças seriam de preocupar, mas o filho do Senhor Onofre, Zequinha, garoto esperto e falante, tinha tranquilizado a todos, ao contar que via os tios sempre, ao voltar da escola. “É verdade, gente, eu vejo eles sentados lá na frente da casa, e não estão doentes não”, explicou.
Mas com o passar do tempo, um fato estranho lhe chamou a atenção: notou que os dois velhos se sentavam de frente para a porta da casa, e costas para a estrada, e por isso nem viam quando ele passava. Preocupado, um dia tentou chamá-los do portão, mas não foi ouvido pelo casal, distraído com algo que acontecia na sala.
Até que em determinado dia resolveu abrir o portão da fazenda do Tio Zé e, sem ser convidado, ir ter com eles, para um pouco de prosa.
Estavam sentados a uma grande distância da porta da casa, no jardim, e assistiam curiosos um programa qualquer que passava na televisão, ligada no fundo da sala. Tia Fia se esforçava muito para enxergar a imagem, “talvez por causa da distância”, pensou o garoto.
“Bênção meus tios! Por que é que estão assistindo a televisão assim, de tão longe?”
“Deus o abençõe, meu filho!”
E puxando o braço do sobrinho, Tio Zé apontou o aparelho  na sala e explicou: “nosso filho deu essa máquina, e falou onde apertava para ligar e desligar...”
“Tá certo, tio”
“E  foi um  presente danado de bom esse!”
“Foi mesmo, senhor”
Fez uma pausa, para depois continuar em voz baixa:
“Mas a máquina fala muito alto, meu sobrinho, então eu e a Fia temos que sentar aqui fora, longe desses gritos...”
Zequinha então compreendeu tudo. Os tios não tinham idéia de como controlar o volume do aparelho, mas, encantados com a novidade, não queriam deixar de assistir um dia que fosse. De imediato, entrou na sala e mostrou o que fazer aos tios, contendo o riso para não envergonhá-los. Aproveitou também para mostrar outras utilidades dos controles, tendo paciência para repetir todas as vezes que o tio pedia. Na cozinha, Tia Fia preparou um cafezinho novo, e o biscoito frito que o sobrinho tanto gostava.
Depois disso, já acostumados com o presente do filho, as noites na fazenda se tornaram mais alegres. E a cada vez que o filho retornava, Tia Fia tinha uma infinidade de assuntos para comentar: coisas que tinha visto nas propagandas e programas, os filmes de amor que assistia durante as tardes, e, principalmente, as imagens dos lugares que nunca tinha visitado, mas que povoavam seus sonhos desde a juventude. Tio Zé ouvia todos aqueles relatos em silêncio, muito quieto, cauteloso como sempre tinha sido, diante daquelas novidades da cidade.

E quando chegava a noite, os vizinhos sempre apareciam, para assistir o capítulo da novela das sete...

(conto também publicado no Blog Sem Vergonha de Contar, de Helena Frenzel)

24 janeiro, 2015

O Passeio

Assim que amanheceu, depois de tomar o café forte e sem açúcar, pegou o velho chapéu de couro e desceu pelo pomar, até o velho paiol. Encontrou facilmente o laço de corda, que jogou por sobre o ombro e tomou o rumo do pasto, à beira do pequeno riacho. Os dois cães o seguiram, acostumados ao significado do assobio do dono, sempre que tomava aquela direção.

Voltou meia hora depois. Trouxe consigo a égua Paloma, a mais mansa da fazenda, e a prendeu com a corda no tronco da grande mangueira do quintal.
Estudou o céu claro de domingo. “Manhã de Deus, o menino vai gostar”, conversava com si mesmo.

Começou a rotina que conhecia bem, de escovar e preparar o animal para montaria. Ele mesmo a tinha adestrado, desde potrinha nova, e tinha com ela uma atenção especial. Poucos sabiam que a égua tinha nascido no mesmo dia que seu primeiro neto, e por isso tinha sido escolhida para ser  sua  primeira montaria hoje, no aniversário de 5 anos. Tinha o pelo castanho e brilhante, crina comprida quase dourada, e quando corria pelo campo era vista de longe, por causa das patas brancas que se destacavam no verde do chão.

Depois de escová-la, colocou a manta grossa e prendeu bem a sela . Tomou cuidado em colocar os arreios, e também em regular a altura certa dos estribos, para que os pequenos pés do garoto tivessem apoio e segurança. “Vê como se comporta, viu Paloma?”, falou alto. Paloma balançou a cabeça em resposta, mostrando os olhos vivos e brilhantes, como se entendesse a importante missão do dia.

Pouco tempo depois, viu o neto chegar. Vinha de mãos dadas com a mãe, falante e alegre, entusiasmado com a grande aventura.  Apesar de tão pequeno, vinha vestido com camisa e calças compridas, botas até o joelho e um belo chapéu. “Parece um cowboy”, pensou o avô. Tinha no rosto um sorriso contagiante, próprio das crianças. Ao ver a montaria preparada arregalou os olhos, e instantaneamente procurou os braços do avô.

Ele o recebeu no colo com carinho, e chegando bem perto da cabeça de Paloma, pediu que o menino conversasse antes com a égua, e lhe fizesse um carinho, pois assim ficariam amigos. Também o lembrou de tratá-la sempre bem, para que ela o levasse em segurança. Receoso a princípio, mas confiante no avô, o garoto afagou a crina, e a cabeça do animal. “Agora monte, mocinho!”.

Saíram pelo quintal, avô na frente puxando o cabresto, e o neto firme e corajoso sobre a Paloma. Conversaram sobre cavalos e meninos. O neto ficou sabendo que cavalos eram fortes e inteligentes, e podiam correr pelo campo. “Igual na televisão, vovô?” “Sim, igual na televisão”. Também aprendeu que bastava bater com as perninhas, e a égua acelerava o passo, ou então, se puxasse as rédeas, ela parava de imediato.
As perguntas não tinham fim, e a cada resposta do avô um mundo fantástico era descoberto pelo neto. Ali, no alto da montaria, já tinha esquecido dos desenhos animados e jogos eletrônicos, e aprendia com o avô uma nova linguagem: “eia Paloma, upa, upa...”.

No fim do passeio, antes de descer, o garoto enlaçou o pescoço da égua: “obrigado Paloma, você me carregou direitinho!”. Ao avô, deu uma recomendação: “quando você estiver com saudade, é só pedir para a Paloma te levar correndo pra me ver...”

Mais tarde, levando a égua de volta ao pasto, o homem foi pensando nas grandes alegrias que tivera naquele dia. Ensinara ao neto coisas simples, aprendidas ao longo da vida, e então o escutara rindo.
Nada se igualava à risada de uma criança montando o seu primeiro cavalo ...


(desenho criado pelo site Poetas Trabajando)

Tomás

Tomás tinha crescido naquele lugar. Perdera os pais ainda muito criança, e depois dos primeiros anos em um orfanato da igreja, fora acolhido pela família.
No início se escondia entre as prateleiras, ouvindo as conversas do dono com os compradores, mas era muito tímido para falar com qualquer um deles. Depois de alguns meses, Señor Manuel passou a ensiná-lo pequenos serviços: entregas na vizinhança, limpeza da loja, e finalmente como armazenar as caixas de mantimentos no armazém.
Com o passar dos anos tinha se tornado o principal ajudante, e além dos serviços de entrega, também ajudava no jardim da Señora. Com ela aprendera a ler e escrever o próprio nome, além de umas poucas palavras, e as contas mais simples, úteis para a loja.
Era de pouca conversa, mas estava sempre disposto para o trabalho, e muito apegado à família. Não se lembrava dos pais, ou mesmo de como fora abandonado, mas tinha enorme respeito pelo Señor Manuel e desmonstrava sempre muita lealdade.
Quando chegara a idade de se casar, o Señor Manuel tinha autorizado que construísse a sua própria casa em um terreno que pertencia à hacienda. Naquela casinha, o peão Tomás, começara a sua família.
Naquela tarde, o sol já se escondia quando ele voltou à cidade. Cavalgara desde manhã muito cedo, e estava cansado mas contente.
Chegou apressado, coberto da poeira da estrada, e ansioso para finalmente terminar a missão que o patrão lhe tinha dado. Antes mesmo de entrar na grande loja do Señor Manuel, abriu a bolsa de couro e tirou o envelope destinado ao patrão.  Subiu rapidamente os degraus da entrada, batendo as botas, como sempre fazia.
Tomás tinha percorrido várias haciendas naquele dia, e nas conversas com os peões entendera o teor da carta que havia levado a cada uma delas:  a moça Rosarito, sobrinha de seu patrão, seria a professora das muitas crianças da região.
Essa notícia tinha se espalhado rapidamente entre as famílias, e todos estavam eufóricos e agradecidos. Tomás percebera tudo isso com uma agitação interna, e ansiedade. Lembrava como fora dificil aprender a ler o pouquinho que sabia, sem escola e sem professora. Queria melhor para os seus filhos, e Rosarito podia fazer muito pelos meninos.
Quando colocou o envelope nas mãos do patrão, baixou a cabeça respeitoso e saiu após de conversarem um pouco.  Depois de tratar do cavalo, pegou o  caminho até sua casa. Sua esposa o esperava de mãos dadas com os filhos, e ele tinha muito o que contar.
Pensou em pedir ao patrão autorização para se juntar aos outros nos trabalhos de reforma, e, quando estivesse pronta, seria ele que levaria a professora até à sua Escola.
Um sentimento de orgulho o invadiu, ao  pensar nos filhos, e no quanto ele cavalgara para que  essa Escola fosse mais que um projeto. Apressou o passo.
Quando a noite de Natal chegou, ajoelhados diante do presépio da propriedade, agradeceu a Deus por seus  melhores presentes: a esperança de um futuro melhor para as crianças, e a grande bondade do Señor Manuel. Sentiu-se tocado pelos bons sentimentos do Natal, com cada um fazendo a sua parte, em um laço de solidariedade e respeito ao próximo.



(Continuação dos contos "El Niño Jacinto" do escritor Jorge Sierra, e "El Señor Manuel" do escritor Henrique Mendes, publicados no site Poetas Trabajando)

23 janeiro, 2015

O Nascimento

Eles seguiam devagar em meio à agitação febril da rua. Destoavam das pessoas apressadas que entravam e saíam das lojas, carregando sacolas de presentes com as últimas compras natalinas. O seu ritmo mais lento de caminhar parecia incomodar um pouco os outros, que aceleravam o passo para ultrapassá-los como se tivessem receio de lhes tocar.
Depois de dias procurando emprego naquela cidade, tinham sido obrigados a deixar a pequena pousada onde estavam, e saído à procura de um outro lugar para ficar. O homem amparava a mulher grávida, oferecendo-lhe apoio a cada parada, e um sorriso de incentivo quando recomeçava a caminhar.
Desde aquela manhã ela sentia dores, e estava assustada com proximidade do nascimento do seu primeiro filho. Já era quase meia noite quando ela pediu para parar.
Olhando em redor, ele a conduziu através de algumas caixas de madeira, e palets abandonadas, na entrada de um beco próximo. Rápidamente ele improvisou um abrigo, esmagando algumas caixas de papelão grandes para ela ter onde reclinar-se. Depois empilhou caixas contra o vento frio, e o ruído que vinham da rua. E algumas sacas velhas, rasgadas, emprestavam alguma intimidade àquele recanto do beco onde, ele sabia, o milagre da vida não demoraria a acontecer.
O dia terminava, e a escuridão trouxe consigo uma pequena fogueira que alguém acendeu. Pouco depois, uma velha senhora surgiu oferecendo uma tigela de sopa.   Aos poucos, outras pessoas que ali se abrigavam foram aparecendo. O pequeno beco revelava-se, agora.
Uma luz fraca acendeu-se, numa janela alta, iluminando mais um pouco. De uma porta que se abriu dos fundos de um restaurante, vieram toalhas limpas. De algum outro lugar, uma velha manta de lã somou-se ao momento.
Enquanto isso, na rua as pessoas passavam indiferentes, desconhecendo o que ali se passava, e a harmonia fraterna que se estabelecia, como um laço natural entre os que dividem dores e dificuldades. Quando a hora do nascimento chegou, deram-se as mãos silenciosamente, em uma expectativa sincera pela nova vida que acontecia.
O bebê chegou com os primeiros raios do sol, e seu choro alto e forte ecoou pelas paredes do beco. Foi colocado em uma pequena caixa de papelão, sob os olhares dos pais felizes e emocionados.

E quando os sinos da igreja, na rua ali ao lado, convocaram os fiéis para a primeira missa do dia, os moradores do beco já estavam ajoelhados e fazendo uma prece pelo pequeno recém-nascido, que trouxera consigo a alegria da vida, e reunira em si as esperanças de tantos com bom coração.

Era Natal novamente.



(Este Conto faz parte do ebook E QUE VIVA O NATAL, coletânea, vários autores. Edição Especial, 1a. Edição, Helena Frenzel Ed., Dezembro de 2014. 

Era Natal

Depois de horas de preparação, tudo estava como ela planejara.
A decoração, embora simples, refletia o ambiente natalino nos enfeites e cores pelo pequeno apartamento.
A mesa fora preparada para dois lugares. No centro um delicado arranjo de flores e ao lado de um dos pratos em pequeno embrulho de presente. 
Começara a bordar aqueles lenços de bolso alguns meses antes, para que nesta noite de Natal fossem o presente para seu único filho.
Se vestira com seu melhor vestido, ansiosa para revê-lo depois de meses. 
Caminhou até a janela, de onde podia vê-lo chegar.
Observou, na calçada do outro lado da rua, uma mulher que se encolhia na tentativa de se abrigar do vento frio. Depois de alguns segundos, percebeu que ela abraçava o pequeno filho, envolvendo-o em seu próprio casaco. "Ela devia estar em casa", pensou.
Consultou novamente o relógio. O filho estava atrasado.
Na cozinha, retirou da embalagem uma garrafa de vinho e a levou para a mesa. Gastara além do que podia, mas era Natal...
Uma hora depois ainda estava à espera, indo de um lado ao outro, verificando inúmeras vezes o que tinha preparado.
Enquanto aquecia a água para um chá, voltou até a janela.

Apesar do frio, a mulher continuava no mesmo lugar, ainda segurando a criança. Inesperadamente, levantou a cabeça e a encarou curiosa. Olharam-se por alguns minutos, uma comunicação muda e compreensível apenas às mães. 

"Ela precisa de um chá..."
Desceu rapidamente as escadas, abriu a pesada porta e acenou chamando-os para dentro. A mulher pareceu hesitar por um momento, mas apertando ainda mais o filho, atravessou a rua com cuidado e se aproximou. 
Subiram ao apartamento em silêncio, ela na frente, com passos apressados. No calor da sala mostrou o surrado sofá, enquanto servia duas xícaras de chá e colocava na mesinha ao lado. Para a criança trouxe uma manta de lã que fora do filho, e por anos era guardada na gaveta do quarto.
Sentadas lado a lado, se tornaram amigas nesta noite de Natal. 
Dividiram o chá e depois o jantar. Falaram de vidas diferentes e dores iguais, filhos que vem e vão, companheiros que não iriam voltar...
O magro menino dormia pesadamente no sofá, como se sonhasse nesta noite, que é também das crianças, com luzes e presentes que viriam.
Quando os primeiros raios de sol atravessaram a janela, ela guardou o presente que preparara, desfez a mesa e observou triste seus dois visitantes. Ambos dormiam abraçados no sofá, indiferentes ao desconforto, mas aquecidos e protegidos.

Pensou em descansar um pouco. Deitou-se vestida, puxando as cobertas e fechando os olhos. Lembrou do filho, e de quantas vezes seria capaz de perdoar e esperá-lo chegar.
Não sabe quanto tempo dormiu, mas acordou se sentindo revigorada e tranquila. Alguém caminhava na sala, e isso a lembrou que tinha companhia, por isso se levantou rapidamente.
O menino estava à janela, acenando para alguém na rua. Curiosa se aproximou, vendo a mulher já longe, fugindo rapidamente.

Não precisava de explicação... era Natal.



(Este Conto faz parte do ebook E QUE VIVA O NATAL, coletânea, vários autores. Edição Especial, 1a. Edição, Helena Frenzel Ed., Dezembro de 2014. 

Natal em Família

Clarice adorava o mês o do Natal.
Apesar da pouca idade, já percebia a movimentação e os preparativos por todos os lugares por onde passava.
Em casa, participava ativamente da decoração, escolhendo cada enfeite e dando pequenos gritos de alegria aos vê-los, um a um, sendo colocados pela mãe na grande árvore de Natal no canto da sala. Esta tarefa demorava mais de um dia, e ao final, quando as luzes eram acesas, a menina abria um sorriso de orgulho, com olhos brilhantes e sonhadores.
Sendo filha do dono da maior loja da cidade, tinha a oportunidade de ver as vitrines sendo preparadas, as ofertas de presentes cuidadosamente separadas em cada departamento, e acompanhava tudo com grande curiosidade: conversando com vendedores e andando o tempo todo por alí, curiosa e agitada. Ao fim do dia, voltava para casa no carro com o pai, comentando sobre as luzes coloridas das ruas, os enfeites e músicas, e as pessoas que via caminhando apressadas pelas calçadas.
Naquele dia o pai   lhe preparou uma surpresa: quando Clarice chegou à loja pela manhã conheceu pessoalmente o  “Papai Noel”,  que se oferecera para vir todos os dias, para  a sua alegria  e de todas as crianças na loja.
A partir de então, a garota passava horas perto daquele senhor velhinho, com roupa vermelha e botas escuras, e que escutava com atenção os pedidos das crianças que vinham à loja, se comprometendo a entregar a cada uma o presente sonhado na noite de Natal. Tornaram-se amigos, e quando não havia nenhum pedido a ser feito, ela mesma se sentava no colo dele e conversavam sobre a fábrica de brinquedos no Polo Norte, os pedidos daquele dia, ou onde estavam os anões e as renas do trenó.
O paciente senhor respondia a tudo com carinho, alimentando o sonho da criança, pela simples vontade de ver o brilho em seus olhos escuros, e a ansiedade que percebia no rostinho corado e feliz. Naqueles momentos ele se esquecia da própria vida, e das saudades do único filho que teve, mas de quem tinha se afastado há muitos anos. Ao final de cada dia de trabalho, voltava para o asilo onde morava, se encolhia na estreita cama, e antes de cair em sono profundo se lembrava da garota, e das conversas do dia. Algumas vezes levava consigo biscoitos e doces que ela havia lhe dado, incapaz de resistir aos apelos para que entregasse aos pequenos fabricantes de brinquedos que deviam estar trabalhando muito para o Natal...
Na véspera do grande dia, Clarice entrou no escritório do pai com rostinho sério, e contou sua aflição: o Papai Noel havia contado que só se reencontrariam no próximo ano, quando chegasse de novo o Natal. A tristeza da menina era evidente, e o pai percebeu que a menina se afeiçoara ao empregado, na ilusão infantil de que se tratava realmente do famoso personagem. Incapaz de negar-lhe qualquer alegria, prometeu à filha o que convidaria para a Ceia com a família, e conversariam para ele a visitasse sempre durante o ano.
E assim foi feito, Papai Noel foi o convidado de honra daquela noite tão especial para Clarice. Ele chegou por último, alegando que teve de fazer algumas entregas pelo caminho, para que a menina não soubesse que tivera de vir caminhando, e que sentia dores nas pernas pelo esforço.
Após o farto jantar, e a alegre distribuição de presentes, Clarice se aproximou timidamente do amigo com um pequeno embrulho. Emocionado, o velho deixou que ela enrolasse em seu pescoço o cachecol que comprara especialmente para ele, e deixara juntos com todos os outros presentes até aquele momento. O pai a lembrou que no Pólo Norte era muito frio, e com certeza o presente seria usado sempre.
Surpreendendo a todos, Clarice argumentou que o presente seria usado quando Papai Noel voltasse a ser o seu avô, na casa onde morava sozinho. E para explicar o que dizia, correu até a estante e escolheu um porta retrato entre os vários ali, com a fotografia onde se via seu pai, ainda jovem, ao lado de um senhor mais velho, que diziam ser o seu avô.
“Mas como pode ser?” perguntou o pai da menina.
Lágrimas escorriam pela face do velho senhor, pela descoberta do seu segredo, tramado para que pudesse estar um pouco mais perto do filho e neta, embora eles não soubessem.
“Como você descobriu, minha criança?”
“Foi o meu pedido de Natal, eu queria ver o meu avô!”






Pássaro

De dentro da gaiola, o pequeno pássaro olhava triste a chuva mansa além da janela.
Ainda era madrugada, e na luz  tímida ele se encolhia silencioso.
Deixou que a imaginação o tomasse, para fugir daquela injusta armadilha.
Em um movimento passou pela chuva e ganhou as nuvens.
Se viu maior, asas abertas, a plumagem cinzenta e branca se agitando enquanto ganhava o céu de forma rápida e firme. Notou que se fortalecia a cada impulso, se transformava.
Tornou-se gaivota.
De cima viu a praia, as ondas quebrando em uma areia alva e a imensidão do mar...

Um ponto indefinido se deslocava no horizonte. Um pequeno barco.
Impôs-se o desafio de alcançá-lo em meio a inconstância das ondas e barreira do vento.
Já próximos, pássaro e barco se reconheceram como parte da mesma paisagem e inseparáveis numa busca sem fim. Não voltariam mais ao mesmo porto, nem pássaro, nem barco.
A consciência dessa liberdade foi inebriante, e chegou de forma inesperada. Foi tão essencial que mesmo em sonho apenas, ainda mera possibilidade, já trazia satisfação.

E quando os primeiros raios de sol aqueceram a gaiola, o pássaro, de volta, cantou feliz.
Afinal era um novo dia, e já não chovia...